Quebrar o gelo ou deixar que ele se quebre
Esta semana falou-se muito de eutanásia e suicidio assistido. O primeiro comentário é o do sentido de oportunidade: não há nada mais importante para os deputados da nação discutirem neste momento? Que tal medidas mais eficazes no combate à corrupção? Fica a dica: prioridades.
Prós e contras. Acabar com o sofrimento, morrer com dignidade, respeitar a liberdade individual, defender a vida humana, não obrigar os profissionais de saúde a matar...
Há duas coisas que me incomodam: a abertura da possibilidade para que alguma entidade ou alguém deixe de fazer tudo o que está ao seu alcance para salvar um ser humano e a questão da dignidade. A primeira é óbvia e a segunda incomoda-me porque parece que se dá mais valor à forma como se morre do que à forma como se vive. Não ter acesso a bons cuidados de saúde ainda vá que não vá, mas a morte quer-se digna, limpa e de preferência indolor. Indigno é morrer numa lixeira à procura de comida. O resto é conversa de quem já tem tanto que até se dá ao luxo de se preocupar em controlar a própria morte...Talvez eu esteja habituado a pensar que temos que cuidar bem das pessoas e melhorar a sua qualidade de vida durante todo o período da mesma.
O nosso corpo é uma máquina (biomáquina, se preferirem) e como todas as máquinas vai sofrendo desgaste, avarias, leva algumas reparações e, há um dia, em que deixa de funcionar. Sempre assim foi e será. Ninguém gosta do desconforto da doença, da dor, dos tratamentos que às vezes parecem piores que a cura. E esse é o ponto crítico. Até que ponto o sofrimento é suportável? Onde podemos e devemos colocar o limite? E em que casos? E quando os cuidados paliativos não limitam o sofrimento? Ninguém gosta nem quer sofrer. Eu se o puder evitar não pensarei duas vezes...
A minha querida mãe sofre da doença de Alzheimer. Há demasiado tempo. Tanto tempo que tudo tem que ser feito por ela, desde preencher a declaração do IRS (é das coisas mais estranhas do mundo uma pessoa estar tão debilitada mas ter na mesma que preencher a declaraçãozinha até vesti-la e dar-lhe de comer. Vê-la assim é uma dor tão grande que às vezes nem consigo ir visitá-la ao lar. Já não anda nem fala. As reacções são cada vez menos e nem ao nome dos netos já esboça o sorriso que era costume. Parece que se vai afundando, lentamente, sendo cada vez mais difícil chegar até ela. Não sei se sofre. Penso que não, não parece ter dores e por certo não se apercebe já da sua própria condição de dependência. Nós, todos os que a amamos, sofremos bastante.
E no entanto, se tivesse deixado escrito que queria morrer se um dia estivesse assim, eu pediria desculpa e desobedeceria uma vez mais. É que quando lhe dou um beijo e lhe peço um de volta, ela, por enquanto, ainda me beija como sempre o fez desde que me lembro de existir.